Everybody’s Gone to the Rapture e a importância da narrativa

O conceito de jogo narrativo caiu sob a indústria de videojogos como uma verdadeira bomba ideológica que muitos têm determinado como um perigoso cancro capaz de colocar em causa o modus operandi a que estamos habituados. Durante anos, mantive-me afastado da discussão e da dialética “não-jogo” que muitos continuam a pregar quando títulos como Everybody’s Gone to the Rapture são lançados e conseguem captar a atenção do público.

Este afastamento é quase contraditório para a minha posição sobre a narrativa nos videojogos. Defendo, e continuarei a fazê-lo, que a indústria necessita de boas histórias e que os produtores e argumentistas estão ainda longe de construir uma base capaz de captar o melhor do mundo dos videojogos com a força narrativa que acompanha o cinema e a própria literatura. No entanto, mantive-me afastado porque sempre senti que a maioria dos jogadores não compreende, de todo, o valor de uma boa história e os elementos que a constroem. E digo isto com toda a sinceridade. E se o digo, porque haveria eu de perder tempo com uma questão que está, à partida, resolvida?

Tudo mudou quando decidi experimentar Everybody’s Gone to the Rapture. Depois de passar horas perdido pelos campos de Yaughton e Little Tipworth, tive o meu primeiro contacto com o tão temido “não-jogo” que, no final do dia, se assemelhou mais a um “jogo” do que o folclore me fazia crer.

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Não existem dúvidas que a The Chinese Room tem uma única e específica missão: contar histórias. Dear Esther e Amnesia: A Machine for Pigs foram as suas primeiras cobaias na procura pela história e jogabilidades perfeitas, mas foi Rapture – que nos oferece igualmente uma campanha mais extensa – o molde encontrado para quebrar a tão maléfica barreira entre os videojogos e o cinema. Rapture não é um jogo perfeito, mas consegue utilizar algumas mecânicas do género na primeira pessoa para passar a sua mensagem emocional e nos fazer perder pelo suposto paraíso rural à procura de pistas. O que aconteceu aos habitantes e que luz estranha é esta que perseguimos? O mote é dado desde o primeiro momento e apesar de sermos conduzidos durante a maioria do mistério, somos livres de explorar e encontrar o nosso próprio ritmo.

Como um jogo narrativo, Rapture arrisca e sucede em quase todos os seus momentos, construindo personagens com profundidade apesar da sua curta exposição. Com cada capítulo (caraterizados pelas zonas do jogo) dedicado a um protagonista, temos acesso aos últimos momentos dos habitantes de Yaughton e construímos o puzzle na nossa própria cabeça. E neste ponto, consigo perceber o porquê da produtora escolher este meio para contar a sua história – a interatividade e o poder das nossas escolhas (ou a sua ausência) reforçam cada momento da campanha e cada fio narrativo que encontramos, algo que seria impossível de experienciar no cinema.

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E interatividade é a palavra certa. Nós interagimos com o local, ainda que estejamos limitados a um número de objetos e interiores para explorar. Mas caminhamos pelas ruas vazias, encontramos pistas, perdemo-nos perante a beleza assustadora dos cenários e fascinamo-nos com os momentos mais fortes da narrativa. Sem nós e sem as nossas escolhas, Yaughton continuaria perdida no tempo, afastada da realidade e com os seus mistérios para sempre perdidos.

É interessante pensar no mundo de Rapture e nas questões que levanta. É um jogo que fica connosco quando apagamos a consola ou desligamos o nosso computador, e o seu magnetismo está na força invisível que liga a narrativa à sua jogabilidade simplista. The Chinese Room criou um mundo forte e vivo, ainda que mórbido, deprimente e assustador que é acompanhado por uma história que complementa todos os seus elementos, desde os gráficos absolutamente cativantes até à banda sonora, que é composta por faixas com coro e pequenos ecos da civilização perdida.

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A ausência de uma explicação mais expositiva deixou-me um sorriso na cara. Isto demonstra não só coragem como confiança nos jogadores, algo que a maioria dos produtores não consegue fazer. The Chinese Room presenteou todos os elementos necessários para construirmos o puzzle, mas deixou espaço para uma narrativa e conclusão mais etéreas que nos deixarão a pensar e a elaborar teorias. É refrescante não ser bombardeado por diálogos repletos de exposição que deixam apenas um sabor mais que amargo na boca; e é refrescante encontrar um estúdio que domine inteiramente a sua história.

Bom, inteiramente é uma palavra muito forte, até porque Rapture perde mesmo na reta final. Infelizmente, The Chinese Room não conseguiu complementar a sua história com um final mais catártico, decidindo fechar a narrativa com uma brevidade algo enervante. Os elementos apontam para uma resolução verdadeiramente marcante e inesquecível, mas os argumentistas caíram no cliché e fecharam com uma mensagem em aberto. Aqui o peão não cai e nem fica a rodar; adormece antes disso.

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Um jogo valerá sempre mais pela sua jogabilidade. Alguns jogadores poderão defender o contrário, mas estão errados. A narrativa ficará sempre em segundo lugar. Everybody’s Gone to the Rapture é apenas acusado de um crime – tentar inverter a ordem e apostar mais na sua história. Para isso, deu-nos uma campanha com um ritmo lento onde a interatividade foi relegada para um plano inferior e quase inexistente no que toca às suas mecânicas (mas continuo a defender que a interatividade acontece através de outro meio). E será esta escolha forte o suficiente para o descrevermos como um “não-jogo”? E o que raio é um “não-jogo”? Olhar para a parede é um “não-jogo”, tal como escrevermos um artigo sobre tal determinação. Serei eu um “não-jogo”? Questões, questões.

Mantive-me afastado, mas aqui estou eu. Everybody’s Gone to the Rapture não estará, seguramente, na minha lista de videojogos favoritos, mas limpou-me o paladar ao demonstrar que sabe o que é e o que quer fazer nesta indústria. Mesmo que o final tenha ficado aquém da minha experiência (terei eu vivenciado algo mais forte?), a verdade é que apresentou momentos de uma extrema beleza que ficarão para sempre comigo. Como argumentista (é o que diz no meu diploma), sinto que ainda estamos longe das grandes e verdadeiras histórias nesta indústria de interatividade, e acredito que afastar Rapture dos restantes jogos não ajudará o seu crescimento. E é por essa razão que concluo que precisamos de mais jogos narrativos e que necessitamos que sejam estudados, avaliados corretamente e renascidos como um novo e único género no futuro. Mais SOMA e Rapture, mais Gears of Wars e Uncharted – tudo no mesmo saco, assim será o futuro.

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É por isso que acredito que precisamos deste tipo de experiências para continuar em frente, a limar as arestas e a recomeçar sempre que encontremos novos elementos. Precisamos de aprender e arriscar num meio que tem tudo para crescer e evoluir. A tão preciosa interatividade tem várias facetas que devem ser reaproveitadas pelos maiores criativos deste mundo. Por isso: começar, aprender, recomeçar – ou não fosse isto tudo um jogo.

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